Saramago, (escritor que, enquanto português, era um excelente espanhol), rabiscou há uns anos uma prosa rebuscada e altamente alegórica / metafórica / estúpida (riscar o que vos aprouver) sobre uma maleita que afectava gradualmente todo o mundo, uma cegueira branca (em vez da negra, mais comum) - uma "obra", chamemos-lhe assim, (se um pontapé do Hulk com uma biqueira de aço na área testicular também o for), capaz de deixar o leitor de rastos, tal é a sua crueza e o tom absolutamente sombrio com que pinta uma humanidade que, desprovida da visão, decai para o mais abissal animalismo - no fundo, e apesar de haver uma única pessoa imune à doença, o seu destino é tão mais aterrador que o dos sobreviventes - contemplar os últimos dias da humanidade.
Falei-vos sobre isto por várias razões: primeiro porque o título do post parecia indicar alguma correlação, mas ela não existe; segundo porque nunca gostei de Saramago, da sua arrogância insuportável, do espúrio constante a tudo o que é português, e muito menos dos méritos literários que, a existirem, eram certamente tão polémicos quantos os seus escritos - aliás, tremo em pensar que depois de terem assassinado Camões nas escolas, atravessado pela pena tísica de Pessoa - no seu olho bom, o cobarde -, o destino do esquizofrénico do Nicola venha agora a ser o mesmo, com um Nobel da Literatura enfiado pela têmpora pelo "novo" génio da língua; em terceiro e último lugar, dado o blog ser meu, posso dar o título que quiser e gostei deste, pura e simplesmente.
E isto é relevante porque...?
Simples, porque fui hoje questionado por que razão andava a escrever menos, a deixar a indolência tomar conta dos meus dedos (das mãos, que os dos pés são constantemente utilizados para manter o equilíbrio enquanto me locomovo), e porque tinha deixado também de desenhar, pintar, cantar profissionalmente (esta última ainda é mais fácil de explicar, porque sou envergonhado, ainda que a minha voz seja absolutamente fantástica no duche), em resumo, ignorando todos os talentos dados pelo Criador (neste caso dois, papá e mamã).
Comecei a remoer, desliguei o jogo que ultimamente já me roubou umas boas 60 horas, (ok, ele crashou pela enésima vez, mas o resultado final foi o mesmo...) e comecei a tarefa laboriosa de abrir o editor de texto do blog para deixar aqui estas letrinhas. Admitidamente, e porque não me considero, de todo, tão especial como por vezes me pintam, as razões eludem-me amiúde, mas resolvi vir experimentar a musa...
E realmente, olhando para o meu umbigo, o que faço com imensa frequência, cheguei à conclusão de que a preguiça, mais do que um pecado capital, é um direito fundamental.
É um pequeno demónio dentro de nós, aquela vozinha que nos diz "faz amanhã, descansa agora", a que nos faz procrastinar constantemente as coisas inadiáveis, que nos rouba a energia como um governo socialista, que nos deixa de tal forma esgotados que o simples facto de pensar em fazer algo nos remete, de imediato, ao mais profundo estupor, boca à banda, fiozinho de saliva a escorrer e um olhar baço, de quem estava a contar com o FMI, de aríete em punho, pela porta de casa à dentro...
Mas, simultaneamente, é uma das bases do hedonismo, uma das mais puras expressões de todos os seres vivos, a do repouso, da inacção, do simples desfrute do tempo que temos nesta terra como algo de divino, demasiado valioso para se desperdiçar em coisas efémeras, corridas loucas e preocupações que os dias se encarregarão de pôr no seu devido lugar...
Posso garantir-vos que, apesar de eventuais semelhanças, não possuo a totalidade dos traços que tornam a "Preguiça de 3 Dedos do Amazonas" num animal que sabe retirar da vida o que realmente importa. Lamentavelmente não consigo reduzir os meus batimentos cardíacos a 4 por minuto (e continuar vivo e consciente, entenda-se...), não sou capaz de estar meia hora debaixo de água sem respirar (pronto, sou, mas só uma vez...) nem acabar de comer uma maçã quando o caroço já floriu, mas pronto, no resto tento seguir-lhe fielmente o exemplo...
Porque mais do que um mero exemplar do reino animal, ser preguiça é um estado de espírito, uma filosofia de vida, uma forma única de encarar os desafios que a sociedade nos propõe - ser preguiça é ser tuga, no fundo.
É ver um governo atrás do outro encher os bolsos e o bandulhos e não fazer nada, é ser diariamente confrontado com injustiças aberrantes (que ninguém pode negar mas que fazer?), tribunais com obesidade mórbida (mas que não deixam que os operem), e ser roubado todo o santo dia em tudo menos no ar que se respira (e é deixá-los descobrir uma maneira de o fazer e...), é perguntar aos conhecidos "como vais?" e ouvir o sempre clássico "vou andando...", e continuarmos nós próprios a andar sem esperar pela resposta, não vá o infeliz mudar o guião e obrigar-nos a despender tempo da nossa preguiça para o ouvir...
No fundo, aqui no meu cadeirão das ideias, onde passei mais horas do que as recomendadas pelo fabricante, mais não tenho feito que ser o português perfeito, o que cala e consente, o que até protesta mas mais não faz do que resmungar e agitar os punhos aos deuses irados, o que acha que greves servem algo mais do que os interesses de quem manda; "pão e circo" diziam os romanos, "vinho e bola" dizia Salazar, e é só disso que os lusos precisam para andar entretidos, de cabeça baixa, como convém com o peso da canga - aliás, tão baixa que nem a canga vêem, tão triste é este estado de animal de carga, que uma vez terminada a vida na lavoura acaba no prato, abatido sem sequer uma palavra de agradecimento.
Para os que me julguem comunista, marxista-leninista, ou até nacionalista, neo-nazi ou coisa que o valha, desenganem-se; não sou uma doutrina, nem um anarca desorientado que acha que todo o poder oprime, não sou uma categoria fácil em olhos de censores, não dou o flanco sem investir e não dou ponto sem nó.
Sou apenas um português, um filho de pais que tudo fizeram para que eu hoje tivesse este direito, este lugar, e este tempo para me fazer ouvir, para fazer uma diferença na vida de cada um que me lê, da existência de cada um que me ouve, ou de, no mínimo dos mínimos, acender uma centelha, uma fagulha de esperança e vontade de tornar este país em algo de grandioso, e não na grandecíssima piada que hoje é, em que o "jogo-do-empurra" se tornou a expressão máxima da arte, em que ninguém tem culpa do actual estado de coisas senão quem veio antes de nós e, como tal, resta a quem pode roubar enquanto dá, e a quem trabalha, pagar enquanto respira.
Levantei-me agora, e escrevo estas palavras de pé, como um homem, sem uma canga sobre os meus ombros, sem talas nos meus olhos e sem vergonha de assumir o fardo de ser português.
Vou ser tudo o que puder ser, e fazer da minha vida algo digno de ser lembrado, algo capaz de erguer outros, algo que nem "eles" consigam calar.
Mas amanhã, que agora vou dormir, às 7 toca o despertador e se eu não for trabalhar não há dinheiro para obras públicas, saúde, educação, saneamento ou investigação. Não há solidariedade social nem reabilitação. Não há preguiça que sobreviva à necessidade de sobrevivência.
Mas há tempo para tudo. Experimentem e vão ver. :)