Boa noite, pessoal :)
Lá deixei passar mais de um mês de intervalo entre os posts, mas foi por uma boa causa - tive mais que fazer, incluindo descansar - 3 semaninhas de férias que caíram que nem ginjas :) - e um regresso ao trabalho que caiu como um piano em cima de cristais Swarowsky :p
Naturalmente que neste interregno usei e abusei das viagens, (bem baratinhas por sinal em last-minute) - fui descobrir a Tailândia mais selvagem, a New York dos filmes de acção, aprendi imenso sobre a história do mundo, (desde a antiguidade até agora), vivi experiências radicais com para-pentes, experimentei armas de fogo de última geração e conduzi carros desportivos de fazer inveja ao Ronaldo - tudo isso praticamente a custo zero ;)
Claro que já se aperceberam que a crise não afecta a imaginação dos tugas (antes pelo contrário, aguça-a) e eu não fui excepção: armado apenas de uma ligação de fibra óptica, um PC que era o último grito em 2009 e os meus reflexos artriticamente felinos entreguei-me de alma e coração a um rigoroso programa de jogos de computador, filmes, livros, música e algumas saídas para jantar e almoçar com família e amigos - até fotos eu tirei do mundo lá fora, nesses dias, tão rara era a ocasião... Mas o mais importante foi mesmo a sensação de ter deixado este país, estes constrangimentos monetários, este rame-rame de pessoas, acontecimentos e rotinas, em que vi coisas novas, tive sensações inusitadas e me desprendi da parte mais física do meu ser.
O que me traz ao tema de hoje - já estavam a pensar que me tinha esquecido, admitam lá... - o dos amigos imaginários e de como a nossa memória percepciona o passado menos recente, mesmo aqueles momentos que garantimos a nós próprios "nunca esquecer"...
Possivelmente alguns de vós terão tido, nalguma fase da infância, a companhia de um fenómeno próprio de pequenos adultos colocados em situações em que precisam de partilhar experiências e acontecimentos com alguém que não os julgue, os acompanhe, entenda e, acima de tudo, esteja sempre presente, no melhor e no pior - a ciência psiquiátrica deu-lhe o nome de "Amigo Imaginário" e a criança ter-lhe-á, por sua vez, dado tudo o resto: outro nome, uma descrição física, preferências pessoais, brinquedos favoritos e até um lugar à mesa, na cama e nas brincadeiras do dia-a-dia.
Em suma, a criança criou-o para fugir da sua realidade, nem sempre de situações traumáticas ou deprimentes, mas muitas vezes apenas como companhia, para poder explorar um mundo que ela populava com as suas criações, os seus pequenos demónios interiores e onde ela era o centro das atenções, o herói ou heroína da história, onde as suas decisões, certas ou erradas, nunca seriam confrontadas com um "porque eu mando", um cruel "porque sim" ou o malvado "porque não"...
Apesar de ser raro detectar estes casos em jovens adolescentes e adultos, (fora de situações clinicamente referenciadas e políticos, em fuga da realidade, para Paris), podemos encarar os livros, os filmes, e o melhor exemplo, os jogos de vídeo, como expressões última da nossa vontade assumida e continuada de vivermos outras vidas, realizarmos façanhas impossíveis, ter toda uma história a girar à nossa volta, tomarmos as decisões mais difíceis e, no final, ficar com a miúda e salvar o mundo - tenha ele folhas de celulose, saia de um plasma de 50 polegadas ou se controle com rato e teclado, não deixámos de ter vivências reais com amigos imaginários - ou talvez vidas imaginadas com amigos reais... :)
E isto encadeia-se, quando vamos envelhecendo, com a nossa memória, companheira de uma vida, aquele elemento indefinível que nos faz não só aprender com a experiência, como guardar pequenas esferas de pura luz dourada, (onde indelevelmente ficaram marcados os momentos mais doces), e outras do mais lúgubre negro, (onde alguma tragédia pessoal nos deixou cicatrizes tão profundas como uma trincheira) - esta nossa capacidade para seleccionar o que nos vai ser essencial para ser feliz, uma referência no espaço-tempo de uma vida, e guardarmo-lo lado a lado com um pedaço de chumbo que nos quer arrastar para o fundo, faz do ser humano uma criatura tão permanentemente insatisfeita como, em última análise, uma obra de arte.
E ainda mais engraçado, é que a nossa memória é de tal forma protectora dos nossos sonhos e pesadelos, que metaforiza à bruta as nossas recordações mais fortes, imbuindo-as de significados e pequenos detalhes, ressaltando apontamentos de cores, cheiros e sons, criando um caleidoscópio feito à medida das nossas expectativas - naquele dia em que tivemos medo de uma aranha, em bébés, um medo que nos acompanhou para sempre, ela não tinha 30 patas peludas e o tamanho de um pequeno cão, nem caminhou sobre nós para nos picar, matar e comer... Mas é assim que a mente se recorda do que sentiu, do que experienciou e vai ser sempre assim que uma aranha será, até que a morte nos leve (ou um bom hipno-terapeuta nos liberte dessa ilusão, o que quer que venha primeiro...).
Paradoxalmente, as boas recordações costumam ser acompanhadas de dias de sol, do cheiro da luz quente - isto faz muito mais sentido (para um neurónio aparvalhado) do que parece -, de sabores intensos, cores vivas e momentos perfeitos - um pouco como uma foto tirada à pressa, em que a gama cromática exagerou todas as cores a níveis impossíveis neste planeta, tornando a realidade numa hipérbole de si própria...
Mas enquanto vivermos, e cada vez mais à medida que a luz se for extinguindo (porque as memórias mais antigas, por terem sido "gravadas" em neurónios mais jovens, são as últimas a morrer...), aquele terá sido sempre um dia perfeito, com a companhia ideal, o amor de uma vida...
Em resumo, em miúdos e graúdos, a necessidade de criar um escape mental parece ser um elemento essencial da nossa sanidade, seja ele um amigo que só nós vemos, um filme de capa e espada, um romance de cordel ou um jogo de role-play...
Quantos de nós levam essa muleta consigo num maço de tabaco, a bebem de um copo de três, a injectam de uma agulha usada, a possuem num quarto de motel, a agridem numa luta de rua ou tentam calá-la com saldos de conta?
A dor que cada um de nós carrega, aquela centelha de permanente insatisfação, é saciada temporariamente com os mecanismos que vamos tendo à nossa disposição, por vezes de forma imperfeita, outras mais conseguida, mas sempre connosco, a verdadeira e genuína inimiga imaginária, o contraponto daquela memória para onde queremos regressar, daquele dia que gostaríamos de voltar a viver, vezes e vezes sem fim...
Enfim, este post já vai enorme e metade de vocês já ronca - sim, tu aí atrás, estou a falar MESMO contigo - pelo que vou terminar: quero que vivam os momentos desta vida com uma intensidade tal que as recordações sejam tantas como as estrelas do céu, que os dias de sol sejam mais que os grãos de areia de uma praia deserta em fim de dia, e que todas as coisas más tenham a importância de um castelo de areia feito na maré baixa... Por maior que pareça agora, vão ver quando a água voltar a subir... ;)
Uma excelente noite, meus amigos, uma vida plena de maravilhas, e lembrem-se, se encherem a memória com sorrisos, não vai haver espaço para as tristezas :D